acontece que lendo antigas notas acabo encontrando coisas que ainda fazem algum sentido; é o caso dessa reflexão sobre o tempo, sobre a precisão, sobre essa pressa que nem de longe percebe a urgência da vida. à (já) antiga nota:
agora são 16h32. mas outros relógios marcam outros horários. Quintana disse, “o tempo é um ponto de vista dos relógios”; é tão poético, tão bonito, singelo, perspicaz, pena estar errado. há uma temporalidade na vida, tal como há o fim, há perda, há morte… do tempo, o eterno devir, o caminho sem volta da vida. o problema são as horas, os minutos, os segundos, 9.192.631.770 períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133 – o segundo já foi 1/31.556.925,9747 do tempo que a Terra levou para girar em torno do Sol a partir das 12 horas do dia 4 de janeiro de 1900 -. artifícios que a humanidade cria para se apropriar da vida, da natureza, que acabam tomando, eles, conta de nossas vidas. de que serve tanta precisão? as horas só servem pra demarcar o tempo da exploração do meu corpo cansado; os minutos e segundos que medem minhas esperas doem. “Navegar é preciso. Viver não é preciso”.
NAVEGAR É PRECISO
(Fernando Pessoa)
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
o que Pessoa disse, tomo com outro significado, mas um significado justo também, penso que Pessoa não se oporia à minha interpretação: não sei pra que serve tanta exatidão, de que serve um relógio atômico que nunca atrasa? pois eu me propus um exercício: adiantei meu relógio em sete horas. agora acordo às 14h, entro no trabalho às 15, almoço às 19, entro novamente no trabalho às 21 e saio do trabalho só à 1h do dia seguinte. comecei antes de ontem e me sinto completamente estranho, parece que as horas pararam de fazer sentido pra mim, olhar no relógio não me localiza no tempo. é até melhor do que quando aboli o relógio.
é noite e chove;
em paris, todos fumam
no ano de 1968.
sento a um canto de parede.
apenas um leve reflexo de chuva
me molha as pernas.
à primeira tragada
engrossa a chuva.
na segunda,
faz-se um aguaceiro.
e a fumaça que sobe
apesar da água que cai
deixa claro que tudo é contradição.
e mostra que eu,
que me acho poeta,
penso mais no poema
que na memória;
e que o poema é todo invenção.
***
meu quarto abriga sombras
que só aparecem quando apago a luz.
—